quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O dia em que o mundo não acabou

Gisele Barcelos

Parecia mais uma manhã comum de domingo. O assíduo leitor do jornal local iniciara o rito diário correndo os olhos pela primeira página do folhetim. Entre montes de palavras, fotos e títulos, de repente, o medo começou a pulsar nas veias. A manchete do dia trazia os dizeres “Furacão Katrina na cidade!”, acompanhada de uma linha-fina nem um pouco tranqüilizadora “Ventos podem atingir 250 km/h, afirma climatologista”.
É bem verdade que, lá dentro, no último parágrafo, a reportagem explicava que o risco era em áreas descampadas da zona rural. Mas, uma vez instalado o pânico, o leitor nem sequer chegou à página dois do jornal. Bem informado como era, ele acompanhou pela televisão tudo o que o devastador tufão fizera nos Estados Unidos. E não deixaria o mesmo acontecer com sua vidinha estável.
Certo de ser melhor prevenir do que remediar, saiu pelas ruas avisando os vizinhos e tentando convencê-los que a querida cidade de 200 mil habitantes nunca chegaria à população de 300 mil, pois não veria o sol nascer de novo quanto menos o próximo censo do IBGE. Tudo em vão. Acenou, berrou e ninguém deu importância. Pelo menos, ficou de consciência limpa e assim foi tratar da própria sobrevivência.
Voltou para casa num bairro de classe média alta e ajeitou o porão, onde construiu um improvisado abrigo “anti-bombas”. Era o máximo possível em tão curto tempo. Levou a cama, as roupas e comida, mas deixou os aparelhos eletrodomésticos de fora porque sabia que a tempestade não perdoaria a rede elétrica. Com o coração apertado, despediu-se da fiel companheira Zara, cadelinha de estimação mimada durante os muitos anos de solidão. Sim o bichinho foi seu único amigo por tanto tempo, porém não pretendia arriscar as noites de sono por causa do latido insistente madrugada afora.
Pronto para dizer adeus à rotina, o leitor lançou a última parte do plano: fez as pazes com a mãe, visitou o irmão mais velho recém-casado, segurou o sobrinho de um ano no colo, fez bundalêlê na casa da ex-namorada que o traiu com o melhor amigo, se declarou para o amor de infância secreto e levou um pé na bunda. Nada ficou para trás que pudesse se arrepender. Pois mesmo que não morresse, o resto do povo certamente não sobreviveria.
Chegada a hora, desceu lentamente as escadas rumo ao porão e fechou o alçapão. No escuro, tateou até achar o interruptor. Acendeu a luz se perguntando até quando teria eletricidade para iluminar o cômodo.
Quatro horas mais tarde, o leitor já podia sentir o alicerce da casa tremer. Por alguns instantes, acreditou até ter escutado o assobio dos fortes ventos. Descobriu, então, que o barulho era bem próximo. Partia de dentro, enquanto o estômago se contorcia até o intestino grosso anunciando uma tremenda dor de barriga. Correu para o minúsculo banheiro do porão e mal teve tempo de arriar as calças.
Sentado no vaso sanitário, enquanto defecava febrilmente, entre um calafrio e outro vinha a lembrança dos pobres coitados lá fora. Da fiel Zara, da piriguete Luiza, do falso Daniel, da doce e insensível Carla... E ainda vidrado pelo turbilhão de memórias e rostos foi estendendo a mão rumo ao papel higiênico. Encontrou apenas o rolo de papelão esgotado. Esticou-se até o armário de suprimentos e nem sinal do produto. Logo, fora atingido pela dúvida cruel: arriscar a vida no Katrina ou ficar com o (piiiiii!) sujo? Decidido, optou pela higiene.
Com a calça arriada, subiu as escadas e lentamente abriu a porta. Tudo parecia silencioso e calmo. O dia era ensolarado, mas o leitor não prestou atenção.

­– Essa é a calmaria que antecede a tempestade! – falou para si mesmo.

Caminhou pela cozinha e, ao entrar na sala, foi surpreendido por todos os amigos e familiares com quem tinha conversado antes. Rapidamente, cobriu a nudez com a almofada mais próxima – infelizmente a menor. Mas a vergonha continuava estampada no vermelho do rosto. A cada instante num tom mais sanguinário. Quem antes chorava de emoção por causa das sinceras desculpas e reconciliação agora trocou as lágrimas por uma expressão petrificada em choque. De repente, todos os pares de olhos arregalados se empurravam aos gritos para sair da casa. Insultado e humilhado, o leitor optou pela morte nos ventos e intempéries do furacão. Mas primeiro foi ao banheiro recuperar a dignidade.
Limpo e recomposto, o homem largou-se no sofá e ligou a TV. Era hora do noticiário local da tarde. Ele estava pronto para o pior. Porém, a manchete do jornal das sete e meia foi mais assustadora do que previa: “Informação falsa deixa cidadão maluco!”. E a surpresa ainda maior foi quando a transmissão ao vivo começou na frente da própria casa.