segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Interrogação

Por Gisele Barcelos

Respostas são coisas interessantes
Se não as possuímos
Por certo, desejamos
Já quando somos atendidos
Não estamos felizes

Preferimos dúvidas e pontos de interrogação
Neles, construímos nossos castelos
Feitos com areias de possibilidades

Pra que amargar SIM ou NÃO?
Podemos nos deliciar com “Talvez”
e saborear o “Quem sabe mais tarde”
Afinal, de que vale uma sentença agora
Se esta destrói o sonho?

Mas respostas são coisas interessantes
Se as possuímos ou não
Por certo, angustiamos.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Rima de quase poeta

Geralmente, escolhemos a narrativa das crônicas para dar um novo olhar à realidade. Mas desta vez, a poesia falou mais alto. Não dá pra limitar a literatura. Por isso, peço licença para mostrar algumas ideias que brotaram na minha cabeça esta semana. Leiam, comentem e repassem! Abraços

Rima de quase poeta
Gisele Barcelos


Hoje eu acordei meio poeta
Com vontade de brincar com os gerúndios
Conjugar os infinitivos
Tornar o futuro mais presente que o passado

Acordei hoje meio poeta
Transformei as dores em rima
As gargalhadas inspiraram os sonetos
E tudo foi parar nos meus versos
De métrica inútil e sincera

Hoje, quase inteira poeta,
O ser bagunçado que sou
Se resumia em frases e parágrafos desconexos
E nenhuma prosa, com seus ponto-e-vírgulas,
Foi suficiente para todo o alvoroço dentro de mim
Por mais que eu tentasse

Mas, se hoje acordei meio poeta,
Será que isso é coisa só de hoje
Ou descoberta de todos os dias?

Quem sabe...
Acho que esta é a graça de acordar assim:
meio poeta

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Enciclopédia

Por Gisele Barcelos

Desenvolvida nos anos 60 para fins militares, a internet era pouco popular até o fim da Guerra Fria. A tecnologia foi mantida sob sigilo durante o conflito, porém os coronéis perderam o interesse no novo brinquedo quando foi anunciado o “cessar fogo”. Hoje aquela jovem conectada no interior de Minas Gerais agradece a Deus por esse dia. Se a ferramenta não fosse cedida às universidades na década de 90, hoje estaria fadada a uma existência sem Google, sem MSN, sem nada.
Para a internauta, a World Wide Web não era apenas fonte de informações sobre a História do Brasil, detalhes da biografia de Hitler, análises geopolíticas e aulas de português. Foi a companheira quem ensinou a observar os itens necessários na revisão do carro e deu dicas sobre o vestido mais apropriado para o casamento na praia. Havia uma relação de confiança. A ponto de a jovem sempre confiar à rede mundial de computadores suas dúvidas existenciais. E ser atendida!
Naquela manhã de segunda-feira, a moderna apaixonada tinha uma pergunta simples na cabeça: Como beijar bem? A moça tinha conquistado o primeiro namorado. O rapaz já havia pedido autorização aos pais para o relacionamento, apesar do ritual parecer careta nos dias atuais. Foram dois meses de flerte, mas sem bitoca. Para maior desespero dela, nem com o amado e nem com mais ninguém.
Agora a internauta sabia que a hora do tão falado primeiro beijo se aproximava. Tinha encontro marcado com o namorado no dia seguinte e não queria decepcionar ou parecer inexperiente. Conversar com a mãe sobre um tema desses não era uma possibilidade. As duas tinham uma relação boa, porém, qualquer tópico referente a sentimentos se tornava um show de comédia, em geral, ridicularizando as atitudes da moça. Por isso, ela não hesitou. Fez a busca no Google e, com um clique, várias técnicas se amontoaram na tela do computador.

- Como acertar no beijo? – repetiu o texto em voz alta. – Para quem ainda não se aventurou, treinar chupando laranja é uma boa ideia... Acho que não. Essa fruta nem parece com a boca de ninguém.

Resolvida, os dedos guiaram o mouse para a página seguinte. Parecia promissora.

- Higiene é fundamental. Então, antes de sair beijando, lembre-se de escovar os dentes ou, pelo menos, colocar uma bala de menta na boca... Daaaaaaarrrrrr! – interrompeu a leitura, constatando que o autor do blog em páginas cor de rosa sabia o óbvio, assim como ela.

O site embaixo já foi mais instrutivo. A mulher experiente de 30 anos escreveu um artigo para ressaltar o entrosamento do beijo.

- Cada um tem um ritmo pra beijar. Às vezes, as pessoas falam “fulano não beija bem”, mas é porque o casal não conseguiu acertar o passo. Alguém sempre vai conduzir. Então, o importante é achar o compasso e a velocidade que dê certo para os dois e ir se adaptando com o parceiro. Lembre sempre de dar umas pausas para engolir a saliva. Uma coisa que ninguém gosta é beijo ultra molhado! – sorriu , mais confiante, porém ainda procurando qualquer coisa parecida com uma figura gráfica de onde e como colocar a língua dentro da boca de outro ser humano.

Vários cliques frustrados se sucederam. A jovem estava quase desacreditando a internet. De repente, a luz apareceu no Yahoo answers:

“Eu praticava muito na mão, antes de dar o primeiro beijo. É só você ir acariciando as costas da mão com a língua. Na hora H mesmo, é só lembrar que vai ter uma outra língua interagindo com você”, ensinava o nome de usuário Tigrão.

O Slarp! Slarp! das lambidas às costas da mão ecoaram no quarto. No dia seguinte, em cada intervalo da aula, se ninguém estivesse olhando, ela aproveitava pra treinar. Foi assim também durante à tarde em casa até pouco antes do namorado tocar a campainha. Ao observar, a língua se contorcer livremente percebeu que já tinha dominado o básico para o primeiro beijo.

E o beijo ficou na história do casal. Foi a melhor noite do mundo. Rendeu até casamento. Vários anos depois, já comemorando bodas de prata, os dois estavam sentadinhos na varanda jogando conversa fora no fim da tarde.

- Sabe, meu bem, tenho que confessar uma coisa. – disse o marido, cortando o romântico silêncio.
- O que foi? – replicou a não tão jovem internauta.
- Eu fiquei com muito medo antes de dar meu primeiro beijo. Treinei na mão. Eu coloquei na net...
- Mesmo? – atravessou, entusiasmada – Eu também. Passei horas na internet vendo dicas. Até que encontrei essa aí, escrita por um cara chamado Tigrão. Deu super certo. Que engraçado!

Ao perceber o rubor no rosto do esposo, a mulher conteve as palavras e já assumiu um tom preocupado.

- Está tudo bem, querido? – questionou, carinhosa.

- Ahã. É que eu sou o Tigrão.

terça-feira, 29 de março de 2011

Paixão Nacional

Por Gisele Barcelos

Ele era o típico homem de família. Despertava às 6h da manhã para comparecer ao trabalho, cumpria todas as obrigações no horário de expediente, buscava as crianças na escola e assistia fielmente às notícias do dia durante o jantar, sempre elogiando o rango da patroa. As contas eram pagas antes de vencimento, como de praxe a todo homem respeitável. Nada havia na praça de comprometedor sobre sua pessoa. Comedido no falar, ele poderia passar a vida sem chamar atenção... exceto pelas noites de quarta-feira e tardes de domingo. Bastava o juiz apitar o início da partida de futebol e o juízo se esvaia do corpo e mente.
Não importa se era o Pau Grande Esporte Clube e o Aperibeense na disputa da taça carioca, jogo de várzea ou mata-mata do campeonato brasileiro. Tendo uma bola em campo e 22 jogadores atrás dela, o coração batia acelerado e a loucura corria nas veias. Nestes raros momentos de insanidade, a esposa preferia deixá-lo em privacidade. Até por medo de guardar na memória aquela figura de olhar assassino, espumando de raiva e descabelada. Um tipo de coisa que daria pesadelo nas crianças.
A raiz de todos os males era o amor ao Palmeiras. Por causa do “porco” é que o futebol começou a atormentar os sonhos do franzino menino aos cinco anos de idade. Influência do pai e dos tios que inculcaram na criança a obsessão pela camisa verde e branca. Por isso, nem precisa dizer que a crise neurótica era ainda pior quando os pontinhos com as cores do coração se mexiam na televisão de 29 polegadas. Da pequena cidade no interior de Minas, a imagem quadrada era o único contato com time amado, pois as responsabilidades sempre o impediram de acompanhar de perto os jogadores em campo.
Como os ataques estavam reservados à intimidade da sala de estar, a família nunca tentou uma intervenção. Afinal, só pode atirar a primeira pedra, quem não tiver pecado. E todos carregam uma esquisitice embaraçosa lá no fundo. Porém, naquela fatídica quarta-feira, em meados de abril, o arrependimento tomou conta do povo.
A tragédia poderia ter sido prevista uma semana antes, quando foi confirmada a vinda do Palmeiras, pela primeira vez, à cidade interiorana para disputar as eliminatórias com o modesto time local. Fato inédito! No entanto, o homem de maneiras lacônicas nada transpareceu para a família e amigos. Como não era fã de aglomerações, a esposa foi pega de surpresa com a notícia da compra dos ingressos.

- Meu bem, amanhã vou chegar tarde em casa porque vou direto para o estádio depois do expediente. Também não posso pegar as crianças, tá bom? – comunicou o marido no habitual tom comedido.
- Você vai encontrar algum cliente ali perto? – replicou a esposa, sem entender quem marcaria uma reunião de negócios num lugar tão desconfortável.
- Não. Vou para o jogo. Comprei o ingresso no início da semana.
- Para o jogo do Palmeiras? Mas num é só às nove horas da noite? O que você vai fazer no estádio seis horas da tarde?
- Garantir o melhor lugar na platéia, uai. Se chegar tarde, vou ficar lá no fundo, atrás da cidade inteira. E já cansei de ver pontinhos ao invés dos jogadores. – disse, deixando escapar sinais de agitação.
- Bom, se quiser, eu posso deixar as crianças na mamãe e te acompanhar...
- Não acredito que seja ambiente apropriado pra você. E acho que os ingressos já esgotaram. – interrompeu sem dar chance a outros comentários.
- Então, tudo bem.

A mulher respirou aliviada por escapar de uma noite de futebol e continuou atarefada com os preparativos do jantar, arquitetando como aproveitaria as horas enquanto o marido se espremia entre milhares de torcedores suados. Depois de muito pensar, optou por uma sessão de manicure/pedicure seguida de filme e pipoca em casa.
Na noite de quarta-feira, de unhas feitas e pintadas num vibrante vermelho, a esposa colocou a mais nova comédia romântica de Brad Pitt no aparelho DVD e apertou o play. Estava curtindo ao máximo a chance de desfrutar a tela grande, pois o controle remoto da TV 29 polegadas sempre ficava em posse do marido ou dos filhos.
As idéias estavam imersas no roteiro mamão com açúcar, quando o telefone tocou. Ela olhou o relógio, se perguntando quem ligaria depois das dez. Preocupada, tirou o fone do gancho na segunda chamada.

- Alô?!
- Carol, você está com a televisão ligada? – despejou a amiga, esquecendo qualquer etiqueta.
- Boa noite pra você também. – respondeu irônica – Benzinho foi pro jogo e...
- Eu sei. Estou vendo. Põe no canal do jogo – atropelou afobada.
- Tá certo, já vai. O que deu em você h...

A cena foi tão chocante que a mulher nem conseguiu completar a frase. As mãos trêmulas derrubaram o telefone no chão ao presenciar a figura de olhos assassinos, espumando de raiva e descabelada em rede nacional. Não tinha como confundir aquela expressão. O juiz havia acabado de marcar impedimento, o que anulou um golaço do verdão. Ou seja, o marido estava totalmente fora de si.
Foi um alívio o anúncio do intervalo. Mas apenas momentâneo. A esposa pensou que os 15 minutos de recesso, o amado teria tempo de recobrar o juízo. Ledo engano. Enquanto vuvuzelas e cartazes combatiam por espaço no estádio lotado, o êxtase coletivo levou o recatado homem de família ao extremo. Lá estava ele, arrancando a camisa pra usar de bandeira na platéia. Os repórteres perceberam o iminente furo de reportagem e congelaram as câmeras no fanático verde.
A imagem seguinte foi traumática. O descabelado arriou as calças, virou de costas e levou a audiência ao delírio num convicto bundalelê tendo nas nádegas a inscrição PAL |MEIRAS. Foi o suficiente para a esposa perder os sentidos. O barulho acordou as crianças, que começaram a choradeira ao ver a situação do pai na TV. Naquela mesma noite, o vídeo foi parar no YOUTUBE sob o título “Maluco mostra tudo em jogo do Palmeiras” e teve quase um milhão de acessos.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Marketing da pamonha

Por Gisele Barcelos

Não imaginava, mas a pamonha é a musa inspiradora de vários artistas no Brasil. Em pesquisa aleatória na internet sobre as origens da iguaria, foi surpresa encontrar demonstrações cantadas de amor à delícia do milho. A princípio, todas no ritmo e com as letras duvidosas do funk carioca; estilo chamado de música com relutância. Porém, à medida que a curiosidade crescia, encontrei também homenagens ao som de rock, chorinho e até blues.
A ascensão do produto, entretanto, é resultado de uma estratégia de marketing bem-sucedida. Publicitários deveriam fazer estudo de caso sobre o marketing da pamonha. A rudimentar produção foi transformada pelos empreendedores pamonheiros em estrutura profissional para comercializar o quitute de origem africana mineira. Hoje o negócio caipira parece uma franquia extremamente organizada, com filiais que se infiltram onde você não imagina e jingles padronizados que grudam na cabeça do consumidor.
No interior de Minas Gerais, por exemplo, antes mesmo do tradicional dizer “Olha a pamonha”, os versos “Tentei te esquecer, não deu! Pensei que fosse mais forte que este amor. Oh minha paixão, sou seu! Por mais que eu queira disfarçar...”, embalados pelo mais brega das canções sertanejas, denunciava a proximidade da filial ambulante.
Do apartamento no último andar, a jovem grávida sempre escutava o chamado. Aos seis meses de gestação, desta vez o apelo foi irresistível e atiçou o desejo pela tradicional pamonha da roça, a melhor pamonha da cidade como afirmava a gravação abafada.
Atraída pelo carro de som, desceu as escadas até o térreo, apressada, porque pelo barulho o vendedor estava ali perto. Esperou ainda uns cinco minutos na entrada do prédio, ouvindo o retumbante anúncio com trilha sonora, sem distinguir de qual lado vinha o ataque.
A jovem grávida já estava irritada quando, finalmente, o condutor da pamonharia móvel apontou no fim da rua. A potência das caixas contrastava com a esguia bicicleta que o vendedor pedalava arduamente. Por um instante, ela chegou a pensar que o mecanismo era apenas para propaganda volante, pois não haveria espaço para carregar um som tão poderoso e ainda as pamonhas naquele precário veículo.

– Oi moço! Tem pamonha aí? – perguntou sem esperanças.
– Se tem! Falta quatroooooo...centas pra acabar! – surpreendeu em tom de brincadeira – Vim lá da fazenda a uns 30 quilômetros da cidade, mas hoje o movimento tá fraco, dona.
– Pensei que vocês só viessem quando alguém pede por telefone... Mas nem deve ter linha telefônica na zona rural, né?
– Que isso, dona. Atendemos pedido por telefone, sim. Tenho um cartão aqui com o número e a senhora pode ligar sempre que sentir vontade! – garantiu, rindo para a barriga sobressalente da moça, e entregou o pedaço de papel.

A tarjeta seria bastante comum, não fossem as informações impressas. Além do telefone fixo e celular, o nome do vendedor vinha acompanhado do site e o email para contato. Tentando disfarçar a incredulidade, a grávida brincou:

– Ah! E esse site funciona mesmo?
– É atualizado todo dia. Tem notícias, receitas, espaço pra sugestões e também dá pra enviar pedidos no chat em tempo real. E a gente ainda recebe por email os pedidos dos clientes. – afirmou orgulhoso.
– Mesmo?

Antes da mulher recuperar a fala, o pamonheiro com chapéu de palha surrado na cabeça continuou:

- Agora montamos o perfil no twitter e já tem uns 250 seguidores. Muita gente já conhecia a marca porque acompanhava o profile no orkut e facebook. Sabe como é, a gente precisa estar atualizado.

Ainda surpreendida com a impecável pronúncia do inglês, a futura mamãe resolver pegar a mercadoria e evitar novos embaraços.

- Que bom! Me dá quatro pamonhas, então. – disse, arquitetando guardar uma para agradar o marido.
- São R$ 20.
- Por quatro pamonhas? Como assim? Nem tem certificado de garantia.
- Mas se a senhora quiser pode entrar no youtube e conferir passo-a-passo nossa linha de produção. Tudo na maior higiene pra segurança do freguês.

Sem dinheiro suficiente na carteira, a jovem já acenava desistindo da transação.

- Deixa pra outro dia.
- Que isso, dona! Tem cartão de crédito? – convidou já sacando o celular com o novo sistema de compras online disponível.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Crônica consumista

Por Gisele Barcelos

Supermercado é coisa engraçada. A definição no dicionário não faz jus ao lugar. Para o colecionador de vocábulos, o tal substantivo nomeia apenas o grande estabelecimento comercial em que o comprador retira as mercadorias das prateleiras e efetua o pagamento da despesa antes de sair. Mas supermercado é bem mais que isso. Carrefour, Pão de Açúcar e Wall-Mart já virou programa de sábado à noite ou domingo à tarde para muita gente. Point para encontrar os chegados.

- Tô indo no supermercado, quer ir?

- Precisando de alguma coisa?

- Nem sei, só pra dar uma volta.

A verdade é que supermercado designa um espaço cheio de possibilidades e aventuras. Afinal onde mais seria possível encontrar um mix de aproximadamente dois mil cheiros, sabores e texturas? De CDs lançamento do Sidney Magal (Waldick Soriano, Fagner, Reginaldo Rossi, Wando, etc. ao gosto do freguês) a preservativos com sabor jiló, tudo está ali a um corredor de distância. E o melhor: sempre existem promoções mirabolantes com economia de R$ 0.03 para mexer com o juízo do consumidor.

Por causa dessas ofertas imperdíveis, o indivíduo desenvolve até problemas de saúde. A moça recém-casada ao procurar a pasta de dentes “mais em conta” vasculhava a parede de caixinhas para encontrar a barganha.

- Tem a total 12, bem. Custa R$ 2,90.

- Pode ser. – disse o marido, sem encontrar o preço da maioria dos produtos expostos e ainda perdido com a infinidade de marcas, etiquetas e números na estante.

A mercadoria já quase encostava no fundo do carrinho quando um outro consumidor enxerido anunciou em voz alta:

- Essa pasta com tratamento profissional pra dentes sensíveis está R$ 0,05 mais barata. Acabei de olhar no detector de preço.

- Então é essa!

- Mas meu amor, mas eu não tenho dentes sensíveis... E nem você.

- Não, mas olha o preço. É mais barato que a outra comum e vem com bônus.

- Morzim, a gente num precisa. Nossos dentes são bem fortes.

- Mal não vai fazer! – agarrava o item em promoção, decidida.

− Mas... Talvez a validade – o esposo tentou racionalizar, sendo interrompido por mais um argumento veemente.

- Por um desconto desse, a gente até fica com sensibilidade.

Vencido, o homem continuou a empurrar o carrinho em silêncio até a seção de alimentos. Os olhos da esposa já brilhavam a contemplar o cartaz com os dizeres “DOIS pelo preço de UM”, próximo a um novo sabor de suco de damasco em pó. A marca era recém-lançada e sem qualquer mocinha simpática entregando amostra grátis.

- Vamos experimentar. Cadê aquele seu espírito aventureiro da época de namoro, hein?! – ameaçou a esposa em tom de cobrança, certa da vitória na discussão.

E acertou. O suco de damasco já está há uma semana mofando na geladeira, à espera da próxima inovação trazida das prateleiras promocionais do supermercado.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Vida em Quadrinhos

Gisele Barcelos

Reza o ditado que peixe morre pela boca. Infelizmente, porém, tal regra não se aplica ao ser humano. Sob o pretexto de “não magoar”, as inverdades mais absurdas brotam daquela confusão entre lábios, dentes e língua. Ai dos ouvintes ingênuos! Porque exemplos reais não faltam.
Eu sei, eu sei... Às vezes nossas opiniões são solicitadas sem a gente querer. É claro que entre a pergunta “Você acha que eu estou gorda?” e a verdade, a saída mais fácil seria a chamada mentirinha - ou omissão parcial da realidade, se você preferir. Não estou falando disso, mas daquelas falas espontâneas, como o “Pode contar comigo” de quem nunca atende o celular na hora da necessidade e o “Estarei lá” da pessoa troféu ausência garantida em qualquer evento.
É também o rapaz indeciso a pensar no futuro que palavreia à jovem namorada “Quero construir uma vida juntos”, enquanto as idéias que circulam na mente realmente soariam como “Eu não estou disposto. Fazer companhia, ligar? Se precisar, ela que me procure”. Ou o indivíduo que diz com todas as letras “A Mariazinha não presta!” e, na frente da pobre Maria, porta-se como o amigo mais simpático dela. Por aí, o leitor já deve ter lembrado outras situações... (Mas, por favor, não cite nomes!).
Os indignados tendem a esbravejar ou promover barracos a favor da sinceridade. Mas isso só desgasta e não resolve. Por isso, queria lançar a campanha para patrocinar uma nova tecnologia semelhante à vida em quadrinhos. Assim os pensamentos de todos estarão bem disponíveis em balões animados. Nada mais de enganos ou decepções. Mesmo que a boca articule coisas para não magoar, as verdadeiras intenções estarão ali flutuando acima da cabeça.
Pense só: O pato Donald até podia tramar alguma coisa, mas você sabia os desígnios mais profundos da mente do resmungão. Tio Patinhas também disse várias falas generosas, porém aquele outro balão em formato de nuvem denunciava a opinião avarenta. Chico Bento jurava nunca mais roubar as goiabas do vizinho e nunca cumpria, só que as atitudes larapias não te magoavam porque já tinham sido explicadas no balão da sinceridade. Seria assim também em nossos dias com essa tecnologia revolucionária.
- Pode contar comigo – disse a boca, enquanto o pensamento gritava em letras garrafais “Neimmmmm... Quero mais ficar no meu sofá”.
- Eu te ligo sim. – responde você já informado que aquela era uma pessoa a menos pra ajudar ou perder tempo ligando.
Basta o ouvinte conferir, fingir que acreditou nos sons proferidos e seguir a vida adiante com a consciência limpa, sem falsas esperanças e expectativas. A verdade é dita, constrangimentos são evitados e ninguém se machuca!
Mas é claro que eu teria direito a um botão exclusivo para desligar o acesso aos meus pensamentos, como patrocinadora do invento.... O problema é que talvez isso se espalhe, como programas piratas e os “gatos” da TV a cabo e internet banda larga. Então, talvez seja melhor simplesmente iniciar uma campanha a favor do SILÊNCIO CONSCIENTE em vez de investir tempo e dinheiro numa tecnologia que dentro de pouco tempo será corrompida por hackers.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O Velório

Gisele Barcelos

Carlão era uma pessoa com quem os amigos sempre podiam contar. Se havia uma certeza era de que ele nunca estava presente em qualquer evento da galera. Foram muitos convites, sempre com confirmações veementes.
─ Você acha que EU iria faltar na sua despedida de solteiro, cara!? ─ disse na véspera do casamento de um companheiro. Mas nada de surpresa. Carlão não compareceu, nem mandou mensagem.
Em outra ocasião, ele garantiu participar do ensaio da banda de rock:
− Pode contar comigo lá no estúdio quinta-feira.
O som de mais uma promessa não cumprida, assim como a balada para comemorar o aniversário de um dos melhores amigos. Se o moço tivesse esperado o telefonema de Carlão, teria festejado sozinho no pequeno apartamento de dois quartos. A festa (sem Carlão), a propósito, foi um sucesso.
E o mesmo se repetiu em formaturas, churrascos, trilhas, almoços e eventos de várias espécies... Até que chegou ao ponto de, apesar da confirmação de presença, os amigos nem incluírem a cota de Carlão no consumo de salgadinhos e refrigerante.
Assim os anos passaram. A galera foi ficando velha e, com isso, a fama de Carlão se consolidou. Ele era o chamando “tratante”, palavra que, no português vulgar, designa o indivíduo que combina e não faz. Para a maioria dos amigos, só havia uma única ocasião em que havia plena confiança no comparecimento de Carlão: seu próprio funeral. Outros ainda duvidavam até disso.
Fizeram um bolão, com média de 10 para 1 nas apostas a favor de Carlão. O assunto virou piada entre a turma. Até que, um certo dia, Carlão realmente partiu dessa pra melhor, bateu as botas, vestiu o paletó de madeira ou qualquer outro eufemismo de preferência para tratar a morte. A notícia atingiu a todos, como sempre acontece nesses casos, e os companheiros enlutados se cobriram de preto para prestar a última homenagem. Afinal, tratantices a parte, Carlão era o gente boa, sempre de bom humor.
Por isso, a esposa, filhos, sobrinhos, tios chatos, colegas de trabalho e a lista dos mais chegados se reuniram na capela deprimente, mal iluminada e com paredes em cor pastel. As cabeças se multiplicavam no salão e as lágrimas também... O olhar marejado talvez tenha comprometido a visibilidade porque muitos minutos passaram até alguém perceber que o Carlão defunto não estava lá.
A princípio, os presentes acharam que a situação era apenas um mal entendido. Mas, aos poucos, a ausência do “homenageado” começou a gerar um alvoroço nunca visto. Liga pra um, manda mensagem pro outro e no contato com o dono da funerária descobre-se que o carro que transportava o morto se envolveu num acidente. O motorista estava bem mas, na batida, a porta traseira se abriu e o caixão deslizou barranco abaixo até cair no rio, sem nenhum possível resgate.
O silêncio imperou por alguns instantes. Mas, uma voz animada surgiu no meio do desconforto geral:
− Eu sabia que ele num vinha. – ria quem venceu sozinho o bolão acumulado em R$ 1 mil. – O Carlão nunca falha.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O dia em que o mundo não acabou

Gisele Barcelos

Parecia mais uma manhã comum de domingo. O assíduo leitor do jornal local iniciara o rito diário correndo os olhos pela primeira página do folhetim. Entre montes de palavras, fotos e títulos, de repente, o medo começou a pulsar nas veias. A manchete do dia trazia os dizeres “Furacão Katrina na cidade!”, acompanhada de uma linha-fina nem um pouco tranqüilizadora “Ventos podem atingir 250 km/h, afirma climatologista”.
É bem verdade que, lá dentro, no último parágrafo, a reportagem explicava que o risco era em áreas descampadas da zona rural. Mas, uma vez instalado o pânico, o leitor nem sequer chegou à página dois do jornal. Bem informado como era, ele acompanhou pela televisão tudo o que o devastador tufão fizera nos Estados Unidos. E não deixaria o mesmo acontecer com sua vidinha estável.
Certo de ser melhor prevenir do que remediar, saiu pelas ruas avisando os vizinhos e tentando convencê-los que a querida cidade de 200 mil habitantes nunca chegaria à população de 300 mil, pois não veria o sol nascer de novo quanto menos o próximo censo do IBGE. Tudo em vão. Acenou, berrou e ninguém deu importância. Pelo menos, ficou de consciência limpa e assim foi tratar da própria sobrevivência.
Voltou para casa num bairro de classe média alta e ajeitou o porão, onde construiu um improvisado abrigo “anti-bombas”. Era o máximo possível em tão curto tempo. Levou a cama, as roupas e comida, mas deixou os aparelhos eletrodomésticos de fora porque sabia que a tempestade não perdoaria a rede elétrica. Com o coração apertado, despediu-se da fiel companheira Zara, cadelinha de estimação mimada durante os muitos anos de solidão. Sim o bichinho foi seu único amigo por tanto tempo, porém não pretendia arriscar as noites de sono por causa do latido insistente madrugada afora.
Pronto para dizer adeus à rotina, o leitor lançou a última parte do plano: fez as pazes com a mãe, visitou o irmão mais velho recém-casado, segurou o sobrinho de um ano no colo, fez bundalêlê na casa da ex-namorada que o traiu com o melhor amigo, se declarou para o amor de infância secreto e levou um pé na bunda. Nada ficou para trás que pudesse se arrepender. Pois mesmo que não morresse, o resto do povo certamente não sobreviveria.
Chegada a hora, desceu lentamente as escadas rumo ao porão e fechou o alçapão. No escuro, tateou até achar o interruptor. Acendeu a luz se perguntando até quando teria eletricidade para iluminar o cômodo.
Quatro horas mais tarde, o leitor já podia sentir o alicerce da casa tremer. Por alguns instantes, acreditou até ter escutado o assobio dos fortes ventos. Descobriu, então, que o barulho era bem próximo. Partia de dentro, enquanto o estômago se contorcia até o intestino grosso anunciando uma tremenda dor de barriga. Correu para o minúsculo banheiro do porão e mal teve tempo de arriar as calças.
Sentado no vaso sanitário, enquanto defecava febrilmente, entre um calafrio e outro vinha a lembrança dos pobres coitados lá fora. Da fiel Zara, da piriguete Luiza, do falso Daniel, da doce e insensível Carla... E ainda vidrado pelo turbilhão de memórias e rostos foi estendendo a mão rumo ao papel higiênico. Encontrou apenas o rolo de papelão esgotado. Esticou-se até o armário de suprimentos e nem sinal do produto. Logo, fora atingido pela dúvida cruel: arriscar a vida no Katrina ou ficar com o (piiiiii!) sujo? Decidido, optou pela higiene.
Com a calça arriada, subiu as escadas e lentamente abriu a porta. Tudo parecia silencioso e calmo. O dia era ensolarado, mas o leitor não prestou atenção.

­– Essa é a calmaria que antecede a tempestade! – falou para si mesmo.

Caminhou pela cozinha e, ao entrar na sala, foi surpreendido por todos os amigos e familiares com quem tinha conversado antes. Rapidamente, cobriu a nudez com a almofada mais próxima – infelizmente a menor. Mas a vergonha continuava estampada no vermelho do rosto. A cada instante num tom mais sanguinário. Quem antes chorava de emoção por causa das sinceras desculpas e reconciliação agora trocou as lágrimas por uma expressão petrificada em choque. De repente, todos os pares de olhos arregalados se empurravam aos gritos para sair da casa. Insultado e humilhado, o leitor optou pela morte nos ventos e intempéries do furacão. Mas primeiro foi ao banheiro recuperar a dignidade.
Limpo e recomposto, o homem largou-se no sofá e ligou a TV. Era hora do noticiário local da tarde. Ele estava pronto para o pior. Porém, a manchete do jornal das sete e meia foi mais assustadora do que previa: “Informação falsa deixa cidadão maluco!”. E a surpresa ainda maior foi quando a transmissão ao vivo começou na frente da própria casa.