terça-feira, 29 de março de 2011

Paixão Nacional

Por Gisele Barcelos

Ele era o típico homem de família. Despertava às 6h da manhã para comparecer ao trabalho, cumpria todas as obrigações no horário de expediente, buscava as crianças na escola e assistia fielmente às notícias do dia durante o jantar, sempre elogiando o rango da patroa. As contas eram pagas antes de vencimento, como de praxe a todo homem respeitável. Nada havia na praça de comprometedor sobre sua pessoa. Comedido no falar, ele poderia passar a vida sem chamar atenção... exceto pelas noites de quarta-feira e tardes de domingo. Bastava o juiz apitar o início da partida de futebol e o juízo se esvaia do corpo e mente.
Não importa se era o Pau Grande Esporte Clube e o Aperibeense na disputa da taça carioca, jogo de várzea ou mata-mata do campeonato brasileiro. Tendo uma bola em campo e 22 jogadores atrás dela, o coração batia acelerado e a loucura corria nas veias. Nestes raros momentos de insanidade, a esposa preferia deixá-lo em privacidade. Até por medo de guardar na memória aquela figura de olhar assassino, espumando de raiva e descabelada. Um tipo de coisa que daria pesadelo nas crianças.
A raiz de todos os males era o amor ao Palmeiras. Por causa do “porco” é que o futebol começou a atormentar os sonhos do franzino menino aos cinco anos de idade. Influência do pai e dos tios que inculcaram na criança a obsessão pela camisa verde e branca. Por isso, nem precisa dizer que a crise neurótica era ainda pior quando os pontinhos com as cores do coração se mexiam na televisão de 29 polegadas. Da pequena cidade no interior de Minas, a imagem quadrada era o único contato com time amado, pois as responsabilidades sempre o impediram de acompanhar de perto os jogadores em campo.
Como os ataques estavam reservados à intimidade da sala de estar, a família nunca tentou uma intervenção. Afinal, só pode atirar a primeira pedra, quem não tiver pecado. E todos carregam uma esquisitice embaraçosa lá no fundo. Porém, naquela fatídica quarta-feira, em meados de abril, o arrependimento tomou conta do povo.
A tragédia poderia ter sido prevista uma semana antes, quando foi confirmada a vinda do Palmeiras, pela primeira vez, à cidade interiorana para disputar as eliminatórias com o modesto time local. Fato inédito! No entanto, o homem de maneiras lacônicas nada transpareceu para a família e amigos. Como não era fã de aglomerações, a esposa foi pega de surpresa com a notícia da compra dos ingressos.

- Meu bem, amanhã vou chegar tarde em casa porque vou direto para o estádio depois do expediente. Também não posso pegar as crianças, tá bom? – comunicou o marido no habitual tom comedido.
- Você vai encontrar algum cliente ali perto? – replicou a esposa, sem entender quem marcaria uma reunião de negócios num lugar tão desconfortável.
- Não. Vou para o jogo. Comprei o ingresso no início da semana.
- Para o jogo do Palmeiras? Mas num é só às nove horas da noite? O que você vai fazer no estádio seis horas da tarde?
- Garantir o melhor lugar na platéia, uai. Se chegar tarde, vou ficar lá no fundo, atrás da cidade inteira. E já cansei de ver pontinhos ao invés dos jogadores. – disse, deixando escapar sinais de agitação.
- Bom, se quiser, eu posso deixar as crianças na mamãe e te acompanhar...
- Não acredito que seja ambiente apropriado pra você. E acho que os ingressos já esgotaram. – interrompeu sem dar chance a outros comentários.
- Então, tudo bem.

A mulher respirou aliviada por escapar de uma noite de futebol e continuou atarefada com os preparativos do jantar, arquitetando como aproveitaria as horas enquanto o marido se espremia entre milhares de torcedores suados. Depois de muito pensar, optou por uma sessão de manicure/pedicure seguida de filme e pipoca em casa.
Na noite de quarta-feira, de unhas feitas e pintadas num vibrante vermelho, a esposa colocou a mais nova comédia romântica de Brad Pitt no aparelho DVD e apertou o play. Estava curtindo ao máximo a chance de desfrutar a tela grande, pois o controle remoto da TV 29 polegadas sempre ficava em posse do marido ou dos filhos.
As idéias estavam imersas no roteiro mamão com açúcar, quando o telefone tocou. Ela olhou o relógio, se perguntando quem ligaria depois das dez. Preocupada, tirou o fone do gancho na segunda chamada.

- Alô?!
- Carol, você está com a televisão ligada? – despejou a amiga, esquecendo qualquer etiqueta.
- Boa noite pra você também. – respondeu irônica – Benzinho foi pro jogo e...
- Eu sei. Estou vendo. Põe no canal do jogo – atropelou afobada.
- Tá certo, já vai. O que deu em você h...

A cena foi tão chocante que a mulher nem conseguiu completar a frase. As mãos trêmulas derrubaram o telefone no chão ao presenciar a figura de olhos assassinos, espumando de raiva e descabelada em rede nacional. Não tinha como confundir aquela expressão. O juiz havia acabado de marcar impedimento, o que anulou um golaço do verdão. Ou seja, o marido estava totalmente fora de si.
Foi um alívio o anúncio do intervalo. Mas apenas momentâneo. A esposa pensou que os 15 minutos de recesso, o amado teria tempo de recobrar o juízo. Ledo engano. Enquanto vuvuzelas e cartazes combatiam por espaço no estádio lotado, o êxtase coletivo levou o recatado homem de família ao extremo. Lá estava ele, arrancando a camisa pra usar de bandeira na platéia. Os repórteres perceberam o iminente furo de reportagem e congelaram as câmeras no fanático verde.
A imagem seguinte foi traumática. O descabelado arriou as calças, virou de costas e levou a audiência ao delírio num convicto bundalelê tendo nas nádegas a inscrição PAL |MEIRAS. Foi o suficiente para a esposa perder os sentidos. O barulho acordou as crianças, que começaram a choradeira ao ver a situação do pai na TV. Naquela mesma noite, o vídeo foi parar no YOUTUBE sob o título “Maluco mostra tudo em jogo do Palmeiras” e teve quase um milhão de acessos.

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